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A estudante de medicina que perdeu os movimentos após AVC e conseguiu concluir a graduação

Para Elaine Luzia dos Santos, de 33 anos, a formatura em medicina representa uma vitória que vai bem além da conquista acadêmica.

Ela é a primeira pessoa com tetraparesia a se formar em medicina no Brasil, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), na cidade de Cascavel.

Em 2014, a paranaense perdeu a fala e todos os movimentos nas partes inferior e superior do corpo, quando ainda cursava o terceiro ano. Ela precisou reaprender do zero como chegar até a faculdade, como ter uma rotina de estudos e até desenvolver uma relação no atendimento aos pacientes.

“O diagnóstico inicial foi de síndrome do encarceramento do tipo incompleta [em que a pessoa tem total consciência e memória preservados, porém sem os movimentos] e isso gera uma tetraparesia, que é diferente da tetraplegia por manter discreta lateralização do pescoço”, relembra o irmão de Elaine, Mário Lucas dos Santos, que também é médico.

Ele diz que a irmã sempre foi uma pessoa muito saudável. “Descobrimos depois uma mutação em um gene da protrombina [proteína produzida pelo fígado] que faz com que tenha uma predisposição maior a formar coágulos”.

Em novembro de 2014, Elaine sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) que a deixou com tetraparesia, sem movimentos nos membros superiores e inferiores e também um quadro de anartria, ou seja, sem a capacidade de comunicação verbal.

O irmão de Elaine conta que desde o primeiro momento em que a médica pôde se comunicar, voltar às aulas sempre foi sua sua principal preocupação. “Ela fazia muitas coisas ao mesmo tempo e queria retomar logo a sua vida”, relata Lucas.

Hoje, o movimento dos olhos é a chave para que Elaine consiga se expressar: ela utiliza uma ferramenta conhecida como prancha alfabética, que forma as palavras de acordo com a forma que ela pisca.

A ferramenta é uma tabela dividida em cinco linhas, cada uma contendo um grupo de letras, Elaine pisca quando a intérprete diz a letra necessária para construir o que ela quer comunicar. O modelo original sofreu algumas alterações para facilitar o seu uso no cotidiano.

“Meu sentimento é de gratidão a todos que passaram no meu caminho, a todas as mãos e vozes emprestadas e principalmente aos pacientes que confiam suas vidas aos meus cuidados”, contou Elaine, em entrevista à BBC News Brasil, que ocorreu por meio da prancha alfabética e com o auxílio de uma intérprete.

O apoio na volta aos estudos

Essa é a segunda graduação de Elaine, que também é formada em farmácia pela mesma universidade. Na medicina, a médica passou por diversas fases de adaptação em seu processo de retorno após o AVC.

Uma delas, inclusive, foi a fase de querer ser invisível, para que os colegas não notassem sua presença. O longo processo de inclusão em sala de aula, lembra ela, culminou nos últimos dias da graduação, quando ela quis que todos soubessem da sua história para incentivar outras pessoas que tenham alguma limitação a realizar seus sonhos.

Para conseguir acompanhar as aulas, ela também contou com o apoio de oito professoras de educação especializada durante a graduação.

A docente de atendimento educacional especializado Clarice Palavissini conheceu Elaine em 2017, quando ela ainda não dominava os movimentos do pescoço e cabeça e não controlava a saliva.

Ela conta que o atendimento começava desde a chegada da Elaine ao estacionamento do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP), com o auxílio no desembarque, condução da cadeira de rodas, acompanhamento das aulas teóricas e práticas e auxílio na comunicação com docentes, discentes e pacientes.

“No estágio da Elaine, foi realizado um rodízio entre os profissionais do Programa de Educação Especializada (PEE), sempre com bom ânimo. No início fazíamos a mediação para ensinar a comunicação. Quando a comunicação já estava boa, eles interagiam entre si, me solicitando em alguns casos de incompreensão”, explica Clarice.

Como os demais acadêmicos de sua turma, Elaine era avaliada ao longo do estágio, tanto em frequência às aulas quanto realizando provas escritas.

A diferença é que Elaine, por ser pessoa com deficiência, tinha 50% a mais de tempo que os outros acadêmicos. A equipe do programa a acompanhava e ela piscava as respostas e enquanto Clarice assinalava ou transcrevia as respostas.

Letras divididas em cinco grupos na prancha alfabética

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL. Prancha alfabética usada por Elaine para se expressar

Elionesia, irmã de Elaine, destaca que o caso bem-sucedido da irmã não reflete apenas a imensa força de vontade que ela tem, mas também as políticas públicas voltadas a alunos como ela.

“É importante dizer que não basta somente força de vontade, mas são necessárias políticas públicas. Sem a Lei de inclusão provavelmente a minha irmã não conseguiria, ela demanda muitos cuidados que são supridos pela família, mas se não houvesse o pessoal da equipe especializada ela não teria acesso à universidade”, explica.

De acordo com o coordenador do PEE, Ivan José de Pádua, a inclusão da pessoa com deficiência no ensino superior está dando certo na universidade porque há espaço para que elas falem sobre as suas reais necessidades.

“A Elaine realizou as mesmas atividades que os outros acadêmicos do curso de medicina fazem, com o apoio do PEE. Que foram sendo construídas com os colegas e profissionais junto com ela”, explica Ivan.

Centenas de pessoas passaram pelo programa de diferentes campus: Cascavel, Toledo, Marechal Cândido Rondon, Foz do Iguaçu e Francisco Beltrão, e vários alunos foram e são atendidos, eles fazem parte do programa, do colegiado, discutem os encaminhamentos, produzem artigos e publicam livros.

“O lema é da Nações Unidas: ‘Nada para nós, sem nós’. Eu tenho deficiência visual e já passei pelo programa como aluno, é necessária a nossa participação para garantir o acesso e melhorar o que é de direito das pessoas com deficiência. Para conseguir esses espaços, escrever a legislação e ainda lutar para que essa legislação seja implementada, seja praticada”, ressalta.

Lei de acessibilidade e inclusão

A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) afirma em seu Art. 27, que a educação é um direito da pessoa com deficiência e que o sistema educacional deve ser inclusivo em todos os níveis. Mas, na prática, muitas instituições de ensino não cumprem essas obrigações.

O Ministério da Educação colocou a acessibilidade como um dos requisitos para credenciamento, recredenciamento, autorização, reconhecimento e renovação de cursos superiores. As universidades precisam estar acessíveis e seguindo a legislação em vigor para poderem oferecer seus cursos.

Caso não ofereçam acessibilidade no ensino superior, elas perdem pontos e correm até mesmo o risco de não ter seu credenciamento autorizado.

“Nós ficamos tristes por algumas coisas que vemos. A maioria dos locais não são preparados, não têm acesso, falta muita empatia nas pessoas, às vezes algumas pessoas olham com olhares de preconceito”, diz Lucas.

Com o surgimento de matérias sobre Elaine, o irmão leu comentários do tipo “ah, por isso que atrasa o hospital”.

“Por incrível que pareça, eu li esse tipo de comentário, mas faz parte, a gente sempre teve que lidar com isso, mas eu fico feliz que a grande maioria enxerga com bons olhos toda a superação da minha irmã. A inclusão é essencial. E só nos damos conta muitas vezes quando nós precisamos”, desabafa.

Elaine junto com a família

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL. O apoio familiar foi essencial durante a graduação, em especial de seus pais

Pouco espaço nas universidades

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o percentual de pessoas com deficiência nas universidades não chega a 1%, embora elas representem 8,4% da população com dois anos ou mais de idade.

Houve um crescimento de 70% no número de matriculados por meio das reservas de vagas.

O Censo Superior da Educação mostrou que o número de matriculados com cotas passou de 2.962 (0,04%) em 2017, para 5.033 (0,06% do total de matriculados) em 2018.

Apesar do crescimento, esse número só representa 0,52% do total de matriculados em cursos de graduação do ensino superior, com 43.633 estudantes em 2018.

Para que o número cresça ainda mais nos próximos anos é essencial que as pessoas conheçam seus direitos e exijam que as instituições de ensino superior cumpram seu papel diante da Lei.

“Nós não queremos ser a primeira e com certeza não ser a última, mas ser uma instituição que oportunizou e fez parte da história da Elaine. E que outras ‘Elaines’ pelo país, independente do seu curso, tenham essa mesma oportunidade, seja na graduação, no mestrado ou doutorado, é importante lembrar que as instituições têm a obrigação, quando eu falo de inclusão, eu falo de inclusão para tudo e para todos”, ressalta Araujo.

De acordo com o IBGE, conforme dados divulgados em 2021, existem mais de 17 milhões de pessoas com deficiência no Brasil.

O preconceito ainda é um dos fatores que afasta esse grupo do mercado de trabalho, mas não é o principal. Quase 68% da população com algum tipo de deficiência não têm instrução ou possui ensino fundamental incompleto, o que torna difícil a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.

Ainda segundo o levantamento feito pelo IBGE, apenas 28,3% das pessoas com deficiência em idade de trabalhar (14 anos ou mais) se posicionaram na força de trabalho brasileira. Entre as pessoas sem deficiência, o índice sobe para 66,3%.

Elaine durante atendimento médico

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL. Elaine durante as atividades práticas do curso

Futuro promissor

Segundo o coordenador do curso de Medicina da Unioeste, Allan Araujo, Elaine sempre participou de todas as atividades: teóricas, ambulatoriais e de centro cirúrgico. Ela nunca colocou restrições e toda universidade, o Hospital Universitário e servidores colaboraram para a formação.

Foi essencial o Programa de Atendimento Educacional Especializado que possui profissionais capacitados e interessados em dar aos alunos o suporte para formação.

Elaine junto com colegas da faculdade de Medicina

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL. ‘Grupo B’: grupo do internato em que a estudante participava

A partir de agora, o sonho de Elaine é especializar-se em radiologia, ela conta.

“Eu gostaria de me especializar em radiologia, por ser uma área que eu posso atuar com relativa liberdade, sem depender de muito auxílio. Nessa área de atuação poderei usar meu conhecimento adquirido ao longo do curso, posso fazer diagnósticos por imagens, precisarei apenas de alguém para digitar o laudo”, conta Elaine.

O professor Allan explica que são inúmeras possibilidades do exercício da medicina e que ela sempre passou muito bem pelas avaliações, esteve no centro cirúrgico, observando e fazendo perguntas dentro da mobilidade que ela tem, além de interagir com seu grupo.

“Mas nós sabemos que ela não vai parar em radiologia, Elaine vai ser o exemplo de uma médica que vai muito além de qualquer limite que nós possamos imaginar ou visualizar, ela nos ensinou sobre a inclusão no curso de medicina, nós temos muitas dificuldades com muitos alunos e ela fez a gente aprender muito. O curso de medicina se sente honrado de tê-la como aluna”, diz.

– Texto originalmente publicado em BBC News

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