As vacinas contra o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, foram desenvolvidas em tempo recorde.
Essa foi uma conquista maravilhosa da ciência, mas que tem pelo menos três limitações.
A primeira é que mutações que geram novas variantes do vírus podem diminuir a eficácia das vacinas ou até mesmo ‘driblar’ a resposta imune que elas produzem.
A segunda é que o SARS-CoV-2 é apenas um de pelo menos sete tipos de coronavírus conhecidos por afetar humanos.
E a terceira é que situações como a destruição de habitats naturais e o avanço do homem em direção a territórios selvagens aumentam as chances de que um coronavírus de origem animal passe para as pessoas.
Por razões como essas, os cientistas concordam que é altamente provável que o mundo enfrente novamente uma nova epidemia de coronavírus no futuro.
Esse risco tem levado vários pesquisadores, mesmo antes dessa pandemia, a buscar uma vacina universal que possa combater diferentes tipos de coronavírus, incluindo todos os que afetam o homem, e as variantes que existem ou podem vir a existir.
Em outras palavras: seria uma vacina poderosa de “pancoronavírus”.
Mas isso é possível?
A família do coronavírus
Os coronavírus são uma família de vírus que compartilham uma característica: a corona, uma proteína em forma de espícula que usam para infectar as células do corpo onde vivem.
Existem quatro tipos de coronavírus: alfa, beta, gama e delta.
Entre eles, há sete que podem infectar humanos, de acordo com os Centros de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC).
E entre esses sete, há três do grupo beta que causaram epidemias nos últimos anos, segundo dados da Organização de Saúde (OMS):
MERS-CoV, que causa a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS). Foi identificado pela primeira vez na Arábia Saudita em 2012. Em março de 2021, 2.574 casos de MERS foram confirmados, incluindo 885 mortes.
SARS-CoV, que causa a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). Foi identificado pela primeira vez na China em 2003. Durante esse surto, 8.098 casos foram registrados, incluindo 774 mortes.
SARS-CoV-2, que causa covid-19. Identificado na China em 2019, até 28 de abril havia infectado cerca de 150 milhões de pessoas, com mais de 3,1 milhões de mortes em todo o mundo.
“Relativamente fácil”
Hoje, vários laboratórios estão desenvolvendo iniciativas para fabricar vacinas universais contra o coronavírus.
O rápido desenvolvimento de vacinas contra a SARS-CoV-2 mostra que pode não ser tão difícil de conseguir, de acordo com especialistas.
Um dos motivos é a proteína S.
Quando essa proteína ataca uma célula, ela estimula a produção de anticorpos neutralizantes que aderem ao vírus e evitam que ele infecte a célula.
Até agora, era relativamente fácil para as vacinas contra SARS-CoV-2 estimularem o desenvolvimento desses anticorpos neutralizantes.
Esses anticorpos têm a capacidade de agir em diferentes variantes do mesmo vírus e podem ser usados para desenvolver vacinas que atuam contra vários membros da mesma família de vírus, como os betacoronavírus.
Além disso, o SARS-CoV-2 até agora não mostrou uma forte capacidade de evadir a resposta imune e a ação dos anticorpos neutralizantes, explicam Dennis Burton e Eric Topol, pesquisadores em imunologia e medicina molecular do Institute Scripps, na Califórnia (Estados Unidos), em artigo na revista científica Nature.
Isso representa uma vantagem sobre outros vírus, como influenza ou HIV, que apresentam grande capacidade de produzir variantes que permitem ‘driblar’ a resposta imune.
Essa é uma das razões pelas quais uma vacina contra o HIV ainda não foi aprovada; e para o qual todos os anos é necessário atualizar a vacina contra influenza.
Outro sinal encorajador vem dos sobreviventes da SARS, de acordo com um artigo recente na revista Science.
Em testes de laboratório, foi demonstrado que os anticorpos que essas pessoas desenvolveram também podem impedir a infecção por SARS-CoV-2, ao menos por um tempo.
Com esse pano de fundo, em comparação com a gripe e o HIV, desenvolver uma vacina contra o pancoronavírus “será relativamente fácil”, diz Barney Graham, vice-diretor de pesquisa de vacinas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (NIAID na sigla em inglês), citado pela Science.
Graham também esteve envolvido no desenvolvimento da vacina contra a covid-19 da empresa farmacêutica Moderna.
Um contra todos
Até agora, nenhuma vacina em testes contra o pancoronavírus foi testada em humanos.
No entanto, “em um ou dois anos teremos muitos resultados”, diz María Elena Bottazzi, codiretora do Centro para o Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Infantil do Texas, nos Estados Unidos, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Em 2016, Bottazzi trabalhou em uma possível vacina contra o pancoronavírus, mas a essa altura o SARS e o MERS haviam deixado de ser uma emergência e outras prioridades, como o ebola e o zika, surgiram. Por isso, não teve recursos para prosseguir com suas investigações.
Segundo Bottazzi, desenvolver uma vacina contra o pancoronavírus é um trabalho em etapas. Ela destaca ser importante não só criar uma vacina que cubra diferentes tipos de coronavírus, mas que funcione contra linhagens que ainda possam surgir.
“O ideal seria uma vacina que cobrisse todos os coronavírus que estão presentes em humanos”, diz Bottazzi, “mas também que ‘prevê’ o próximo coronavírus que poderia causar um surto”.
Em busca da vacina
De acordo com Bottazzi, existem duas maneiras de se fazer uma vacina contra o pancoronavírus.
Uma opção é desenvolver várias vacinas individuais, chamadas monovolantes, que atuam sobre um coronavírus específico e, a seguir, combinar várias vacinas monovalentes para obter uma única vacina polivalente, que atua sobre vários tipos de coronavírus.
Essa é a tecnologia usada, por exemplo, na vacina pentavalente que protege crianças contra infecções por difteria, coqueluche, tétano, poliomielite e Haemophilus Influenzae tipo B.
A outra opção é encontrar um código genético que seja suficientemente representativo dos coronavírus, a partir do qual uma vacina universal possa ser criada.
Uma vez que qualquer uma dessas vacinas seja alcançada, os laboratórios e empresas farmacêuticas devem avaliar se elas as produzem e têm em estoque para quando forem necessárias.
Outra possibilidade não é fabricá-las totalmente, mas avançar nos estudos de segurança e eficácia e, caso ocorra a ameaça de uma pandemia, começar a fabricá-las a partir do que já foi feito.
O momento certo
Dado o impacto da covid-19, o desenvolvimento de uma vacina contra pancoronavírus se tornou muito relevante.
Em novembro de 2020, o NIAID abriu uma convocação de emergência para financiamento de projetos de fabricação de vacinas contra pancoronavírus.
Em março, a Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias (CEPI, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos que trabalha em parceria com a OMS, anunciou um fundo de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão) para acelerar a pesquisa no desenvolvimento de vacinas contra betacoronavírus.
De acordo com a revista Science, existem atualmente mais de 20 equipes de pesquisa no mundo trabalhando em uma candidata para uma vacina contra o pancoronavírus.
Segundo o CEPI, várias dessas iniciativas parecem promissoras em princípio.
Uma delas une as britânicas Universidade de Nottingham, a Universidade Nottingham Trent e a farmacêutica Scancell.
A aposta dessa coalizão é por uma vacina que atue na proteína S e em outra estrutura do vírus, a proteína N.
Essa proteína N é muito menos propensa a sofrer mutação, portanto, se a vacina conseguir agir sobre ela, poderá gerar uma resposta imunológica, independentemente de a S ter sofrido mutação.
Dessa forma, pode oferecer proteção contra vários tipos de coronavírus.
O CEPI também destaca o projeto do Instituto de Tecnologia da Califórnia, que está trabalhando em uma vacina “tudo-em-um”.
Esse protótipo consiste no uso de uma nanopartícula que sustenta fragmentos da espícula de vários coronavírus.
Em testes de laboratório em fevereiro, esse método mostrou que pode gerar anticorpos contra vários tipos de coronavírus.
China e Cuba também estão trabalhando em um projeto conjunto para desenvolver uma vacina universal que chamaram de “Pan-Corona”, de acordo com a agência de notícias EFE.
A técnica consiste em combinar fragmentos de diferentes coronavírus, a fim de gerar uma resposta imunológica que atue sobre todos eles.
Por enquanto, “a urgência é terminar de atacar covid-19”, diz Bottazzi, mas “não devemos pensar que resolvendo a crise do covid-19 já estaremos fora do problema”, acrescenta.
“Temos que continuar procurando alternativas para qualquer emergência”, conclui.
Fonte: BBC News