Da criação em cativeiro à contaminação por metais em mar aberto, suspeitas ameaçam a reputação do peixe. Será que ele merece ser tratado com desconfiança?
Vem de tempos distantes a nutritiva parceria entre o salmão e a espécie humana. Arqueólogos encontraram espinhas do peixe em cavernas habitadas pelo homem na América do Norte há mais de 11.500 anos. Nada impede, porém, que ancestrais mais antigos e de outras paragens tenham pescado e aproveitado essa nobre fonte de proteína e gordura.
Falamos de um animal peculiar, que, na natureza, recebe a classificação de anádromo. “Isso significa que eles ficam a maior parte do seu ciclo de vida no mar, mas se reproduzem na água doce”, traduz o biólogo Flávio Lima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A família dos salmonídeos (que ainda inclui as trutas) teve papel crucial no menu de povos que habitavam áreas gélidas, especialmente dos vikings – que os saboreavam até no café da manhã – e dos esquimós, que, muito tempo depois, jogaram a isca para os cientistas investigarem as benesses do ômega-3 ao coração.
Assim se passaram séculos de fartura em que a pesca era realizada sem o menor controle. Além das alterações impostas ao hábitat natural, essa voracidade e falta de cuidado resultaram em uma assustadora redução das populações de salmão na costa europeia. “O peixe ocorria, em sua maioria, nos países da Europa banhados pelo Atlântico, mas hoje é mais raro por causa da modificação que os rios sofreram”, conta Lima.
Ainda que os arredores do Alasca apresentem boa quantidade de espécies nativas do Pacífico, os estoques do peixe no mundo só foram repostos pra valer quando a criação em cativeiro se firmou na Noruega em meados do século 20.
Apesar de ser originário do Hemisfério Norte, das regiões à beira do Ártico, hoje seu cultivo é um sucesso abaixo da linha do Equador, em especial no litoral do Chile. “A temperatura dos mares, de cerca de 8º C, colabora para que esse país seja um grande produtor”, explica o engenheiro de aquicultura Francisco Lagreze, da Universidade Federal do Paraná.
É justamente de lá que vem a maior parte do salmão que saboreamos aqui. Segundo a Seafood Brasil, de julho de 2015 a junho de 2016 importamos 89 352 toneladas, sendo 87 951 de berço chileno.
Pelo montante não resta dúvida de que os viveiros contribuíram para a popularização do peixe nas mesas brasileiras. No entanto, há quem enxergue na produção de cativeiro uma maré de problemas ambientais. “A expansão desse cultivo para áreas selvagens, os efluentes dos tanques e o uso de químicos tornam difícil de prever um futuro ecologicamente sustentável”, afirma Simone Jones, gerente de negócios do Seafood Watch do Monterey Bay Aquarium, entidade americana que promove ações em prol do meio ambiente.
Somam-se a essas críticas alegações que, por ora, soam mais a preconceito. É o caso da ponderação de que ele seria menos nutritivo que a versão selvagem. “Tem muita falácia e várias lendas por aí”, diz o nutrólogo Edson Credidio, membro do Colégio Americano de Nutrição. “Aquele que vem de cativeiro é tão rico quanto o que vive livre nos oceanos”, defende.
Boa parte da má fama do animal das fazendas marítimas está associada a denúncias (não confirmadas) de que ele é tingido por corantes tóxicos e a surtos recentes de doenças que afetam os próprios peixes. A aquicultura chilena tem padecido com ataques de vírus, sobretudo de um chamado ISA, que pode ser fatal ao bicho.
A crise se agravou no início deste ano, quando o oceano foi tomado por uma proliferação de algas. Biólogos explicam que o aumento da temperatura do planeta, por causa do fenômeno El Niño, ocasionou esse desequilíbrio e elevou a mortalidade de diversas espécies, incluindo o salmão.
Toneladas de perdas têm obrigado os produtores do Chile a repensar algumas práticas, sem contar que há pressão para mudanças na legislação. O professor Lagreze revela que já existe um programa para a redução da densidade nos tanques de cultivo, o que melhora a oferta de oxigênio, atenua o estresse dos animais e combate a multiplicação de micro-organismos ruins.
Uma estratégia também é vacinar os peixes ainda jovens para prevenir epidemias e diminuir o emprego de medicações. Aliás, esse tema remete ao epicentro da polêmica em relação aos viveiros: a utilização de antibióticos. Existem acusações de que o exagero favoreça a resistência bacteriana e prejudique o tratamento de problemas que vão muito além dos mares.
“Há várias restrições quanto ao uso desses medicamentos na indústria do salmão e todos os protocolos têm sido cumpridos”, pondera o biólogo Alfredo Tello, do Instituto Tecnológico del Salmón (Intesal), em Puerto Montt, no Chile. Em relação ao risco de ingerirmos doses de remédio entremeadas ao sashimi ou ao filé grelhado, experts garantem que ele é inexistente. Os peixes que recebem fármacos passam por um período de quarentena antes do abate a fim de eliminar os resíduos. “Como se trata de um produto exportado para todo o mundo, as normas de controle são rígidas”, afirma o médico Flávio Zambrone, do Instituto Brasileiro de Toxicologia.
Outra controvérsia reside na ração dos salmões. Ativistas dizem que o excedente dessas refeições se deposita no solo do oceano e altera o ecossistema local. “Existem regulamentos quanto ao impacto no fundo do mar, e aqueles que não atendem aos requisitos estão sujeitos a multas”, contrapõe Tello. Os produtores são obrigados a alternar ciclos de cultivo e de descanso para promover a recuperação da região.
A matéria-prima das rações também é questionada. “Observamos um excesso de ingredientes derivados de peixes na composição”, critica a bióloga Cintia Miyaji, do Centro Universitário Monte Serrat, em Santos. Sacrificar espécies para alimentar salmonídeos é condenado pelos ambientalistas. Na receita da ração entram vísceras, caudas, espinhas e, para reduzir custos, até grãos como soja.
“Há ainda o acréscimo de pigmentos da classe dos carotenoides, caso da astaxantina”, informa a bióloga Neuza Takahashi, do Instituto de Pesca do Governo do Estado de São Paulo. Esse ingrediente, por sua vez, tem um papel bem vistoso na história.
“Não fosse pela inclusão dos pigmentos, os salmões de cultivo apresentariam um filé de coloração clara”, esclarece Neuza. Segundo o engenheiro agrônomo Giovanni Vitti Moro, da Embrapa Pesca e Aquicultura, os carotenoides da ração são produzidos a partir de leveduras e de maneira natural.
“Não existem evidências de que compostos como a astaxantina causem danos à saúde do consumidor”, diz a nutricionista Carolina Falcoski, da Equilibrium Consultoria em Nutrição. Aliás, assim como acontece no cultivo, os peixes que nadam livres precisam do mesmo componente para ostentar seus tons alaranjados. Na natureza, eles devoram pequenos crustáceos vermelhos lotados da substância, que, uma vez absorvida, é depositada na sua musculatura e tem papel na fase reprodutiva.
Para o chef Tsuyoshi Murakami, do restaurante Kinoshita, em São Paulo, é justamente por causa de sua exuberante tonalidade que o salmão faz sucesso entre os brasileiros. Nascido em Hokkaido, ilha japonesa que é berço de salmonídeos, Murakami não tem preconceito contra o peixe de cativeiro. Pelo contrário, serve e consome no dia a dia. “Mas a textura da carne não é tão firme quanto a do selvagem”, nota. Murakami também diz sentir traços do aroma da ração usada nas fazendas.
O paulistano Alexandre Saber, o Sassá, chef do restaurante que leva seu apelido na capital paulista, relata, ainda, que existe uma crescente procura pelo silvestre. “Há quem aprecie o sabor diferenciado”, conta o sushiman.
Aprenda a escolher
Conhecer a procedência observar alguns detalhes faz a diferença na hora da compra
Numa fria
Se não optar pelo salmão congelado em postas, o peixe fresco precisa estar completamente envolto em gelo na feira ou no mercado.
Cheiro de mar
O ideal é sentir o aroma de maresia. Se o cheiro tiver notas de amoníaco, por exemplo, há grandes chances de o peixe estar se deteriorando.
Carne tenra
Ao apertá-lo, o melhor é que as marcas dos dedos não se mantenham por muito tempo. As escamas devem ser reluzentes e bem coladas à pele.
Cor viva
Veja se as guelras estão vermelhas e úmidas. Esse órgão, que é parte do aparelho respiratório do peixe, denuncia se ele passou do ponto.
Brilho no olhar
Os olhos devem estar transparentes, brilhantes e salientes, ocupando bem as órbitas. Quando murchos e fundos, indicam decomposição.
Natural versus cativeiro
Nem sempre aquele que vem da natureza é o mais desejável. “O salmão selvagem original da Noruega pode conter mercúrio, um metal pesado tóxico aos neurônios”, aponta o nutricionista Dennys Cintra, da Unicamp. “O depósito de metais tem relação com a região em que vive o pescado, mas aqui no Alasca, por exemplo, estamos em local limpo, sem contaminação”, assegura a bióloga Michael Kohan, do Alaska Seafood Marketing Institute.
Ainda assim, por causa das suspeitas, Cintra sugere priorizar o consumo dos salmões de cativeiro. Só que ele não deixa de fazer uma ressalva: “Eles contêm menos ômega-3”.
Eis que, de novo, o bicho se afoga em polêmica. É curioso que, em algumas análises e tabelas nutricionais, os pescados de fazenda chegam a ganhar dos selvagens na quantidade dessa gordura benéfica. Tudo depende, porém, da ração e do meio em que o peixe nasceu e cresceu.
Diferenças de miligramas à parte, o que realmente importa é que ambos entregam ao redor de 1 grama de ômega-3 em uma posta de 100 gramas, dose que, se consumida com regularidade, ajuda a proteger olhos, cérebro e coração. Uma sacada para aproveitar até a última gota desse nutriente é consumir o peixe com a pele.
“É ali, nas vísceras e na cabeça que estão as maiores concentrações da gordura”, ensina a nutricionista Nágila Damasceno, da Universidade de São Paulo. Além do ômega em si, o peixe traz boas reservas de proteína, cálcio e vitaminas. É tudo de que o corpo humano gosta já faz alguns milhares de anos – do norte do Atlântico ao sul do Pacífico.
Dentro da lata
O salmão já invadiu a praia da sardinha e hoje é possível encontrá-lo em versão enlatada. Ao contrário do que se imagina, o produto não contém conservantes. “O peixe é esterilizado dentro de latas vedadas”, explica Gustavo Faria, gerente de garantia de qualidade da Gomes da Costa. Ou seja, na embalagem, ele passa por altas temperaturas, o que elimina micróbios e amplia sua durabilidade.
Fonte: Sua Saúde – Abril