Após mais de 369 mil mortos por covid-19 e uma população fadigada pelas medidas de isolamento social, seria possível supor que a urgência de uma vacina contra o novo coronavírus fosse unânime entre os brasileiros.
No entanto, posições antivacina, embora minoritárias no país, são compartilhadas pelo presidente da República e por cidadãos, em um contexto de negacionismo da pandemia e desapreço pela ciência.
Em 1913, antes mesmo de vivenciar os horrores da gripe espanhola, Sigmund Freud escrevera que não havia “nada mais caro na vida que a doença – e a estupidez”.
Definida por dicionários como uma ausência de discernimento, a estupidez tem caracterizado um posicionamento específico de algumas pessoas diante da vida, argumenta o psicanalista Mauro Mendes Dias em seu livro O discurso da estupidez (editora Iluminuras).
O autor identifica a vigência, hoje, de relações entre pessoas e com o mundo baseadas em uma substituição da verdade pela crença.
Segundo ele, a estupidez é local e, ao mesmo tempo, internacional.
Esse discurso, que é sem rosto e sem palavras, fica visível por meio das vociferações, conceito psicanalítico criado para designar os gritos marcados pelo ódio e que visam a impedir qualquer possibilidade de diálogo. Alguns minutos de interação nas redes sociais oferecem farta amostragem de uma comunicação cada vez mais vociferante.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mendes Dias, que é diretor do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise, explica que a maior ênfase do discurso da estupidez “reduz a complexidade, a inteligência e a reflexão”.
Mendes Dias observou isso com a entrada do ex-premiê Silvio Berlusconi na política italiana, ainda nos anos 1990, inserindo naquela cena o mundo do marketing e da mídia. “Quando a política se torna um espetáculo, trata-se de transformar a complexidade da realidade, de agradar o público e a opinião pública, e não do compromisso político. Então, o discurso da estupidez propiciou o advento de líderes estúpidos”, diz o psicanalista.
“Mas isso não é feito iludindo as pessoas de forma grosseira. Tem que ser construída uma outra realidade”, prossegue. Nessa outra realidade, que deixa tudo definido e decidido para que os sujeitos simplesmente sigam, sem precisar fazer escolhas, as fake news e os absurdos são fundamentais para a “transformação da política em um espetáculo grosseiro”.
“O que há de cativante no discurso de estupidez é que ele soube bem mobilizar essa espécie de paixão que habita a coletividade, que é poder ficar cega e surda pra tudo aquilo que importa”, argumenta Dias.
“Nesse sentido, não é por acaso que os líderes estúpidos, principalmente aqueles que ascenderam na Europa, elegeram o imigrante como o grande problema. Ou nos EUA, em que se pensou que um muro na fronteira com o México ou acusar a China de querer roubar a economia mundial iria resolver todas as questões do país. Quem quer resolver um problema com seriedade não pode achar que botar um muro vai zerar os conflitos de um país.”
Segundo o autor, esses são exemplos de o quanto se abre mão do pensamento crítico. “O estúpido quer prometer absurdos e cultivar uma espécie de adoração da morte; trata-se, o tempo todo, de destruir. Seja uma ilusão de mudança, seja tudo aquilo que representa o patrimônio da humanidade, no sentido ecológico ou cultural.”
A principal tese do livro é a de que no discurso da estupidez, em seu propósito de instalação de uma nova realidade, a crença é colocada no lugar da verdade. Mas ele faz uma ressalva: “Não é uma questão de religião, é uma questão de seitas.”
Na prática, a crença em um absurdo tem caráter cativante porque retira a necessidade de se lidar com a complexidade que é viver. “Se a gente se orientar pelos princípios das seitas, pra que viver de maneira virtuosa, estudando, ou lendo, se daqui a pouco tudo vai acabar?”
A aderência às ideias absurdas não decorre de ignorância, baixa escolaridade ou condição socioeconômica, explica Dias. A ligação à crença passa por questões mais complexas, como a sexualidade.
“Não por acaso a vigência dos líderes estúpidos cobra sempre o preço da eliminação das diferenças. Uma vez que os líderes estúpidos surgem na cena política, eles apregoam uma moral heteronormativa combativa da diversidade sexual e encontram um apoio significativo nas diferente ‘igrejas’ que proliferam nesse país e que fazem questão de colaborar com a estupidez ao identificar essa diversidade sexual com o demônio.”
Estupidez e teorias da conspiração
Tanto o Brasil quanto outros países são palco de outra modalidade de enlaçamento pela crença: as teorias da conspiração, que, segundo o psicanalista, constituem comunidades em que pessoas compartilham um certo modo do vida.
É o caso do movimento QAnon, nascido nos EUA e hoje com adeptos inclusive no Brasil. Segundo esta teoria, o ex-presidente dos EUA Donald Trump é herói em uma espécie de acerto de contas final contra poderosos supostamente pedófilos e satanistas que ocupam o governo, a imprensa e o mundo corporativo.
No início do ano, membros do grupo participaram da invasão ao Congresso americano.
O psicanalista brasileiro destaca que, em teorias como essa, o absurdo confere aos sujeitos a possibilidade de atos insensatos.
“O sujeito se mantém cego e surdo, mas é mais perigoso – acabamos de ter a demonstração disso na invasão do Capitólio, em que pessoas morreram.”
“Esse tipo de agrupamento humano consente à experimentação do gozo transgressivo, ou seja, você poder transformar sua vontade em lei: ‘Minha vontade é que isso [a existência de uma rede de pedofilia chefiada por líderes políticos] seja verdade, o que vai me autorizar a dar uns tiros em quem eu quiser’.”
Eles acreditam nisso?
Se para alguns persiste a convicção de que a Terra é plana, o coronavírus não existe ou Trump vai acabar com uma elite praticante de pedofilia, fica a pergunta: as pessoas realmente acreditam nisso que defendem ou são pessoas conscientes de que estão propondo outras realidades?
O diretor do Instituto Vox esclarece que há, por um lado, a adesão de sujeitos psicóticos ao discurso da estupidez, uma vez que eles “encontram um determinado tipo de conforto e de pacificação” porque aquela comunidade, aquele grupo de membros, não implica questões complexas que trariam dificuldades muito grandes para estes sujeitos.
No entanto, Dias adverte que qualquer um de nós pode aderir ao discurso da estupidez, por meio de motivações diferentes. Em seu livro, ele explica que a estupidez é uma condição humana que pode estar presente “em cada um dos espectros políticos e dos cidadãos”.
Ele explica que alguns aderem a esse discurso porque encontram, neste momento histórico, a possibilidade de conquistar de forma mais rápida seus diferentes objetivos, incitando a redução de todas as complexidades possíveis e promovendo a destruição e a morte.
Para outros, a adesão deriva de uma espécie de necessidade de se acreditar em absurdos como forma de encontrar satisfação ou manter alguma esperança. E esta disposição ao absurdo tem relação com questões de desamparo e perspectivas de vida.
“Eu diria que praticamente a grande maioria das pessoas, em se tratando de Brasil, precisa acreditar nessas coisas. Não são loucas – essas pessoas vêm desacreditando. Mas é difícil ter que desacreditar porque elas só acreditaram por estarem no abandono total.”
Este abandono se refere a uma decepção com as promessas não realizadas do sistema democrático. O bem-estar social e econômico prometido não veio, e isso alimentou as consequências que vivemos agora.
“O que a gente está criticando agora não caiu de repente em cima do meu colo nem do seu. Um terreno adubou isso.”
“Nosso presidente da República estava há praticamente 30 anos dentro do Poder Legislativo, então isso não vem de agora. O difícil, eu penso, é ter de reconhecer que isso já está estava aí. Só que havia uma percepção limitada, uma banalização do nível da tolerância das pessoas. Supôs-se que os diferentes dramas humanos e as diferentes misérias iriam esperar pelas promessas democráticas, enquanto as pessoas viam o roubo e a dilapidação do patrimônio do país. Supunha-se que as pessoas iam continuar aceitando isso e que ninguém ia reagir.”
O resultado desse processo de anos, na avaliação de Dias, foi uma perigosa recusa da política, com desdobramentos no enfrentamento da pandemia.
“São seres verdadeiramente hediondos que estão aí na realidade social brasileira. Digo isso porque se tem uma coisa que qualifica o sentido de hediondo é você consentir que as figuras públicas não tenham nenhuma competência pra poder administrar responsabilidades da nação e, ainda assim, se mantenham lá.”
“Isso significa que estamos indo galopantemente em direção à destruição, e o tipo de tratamento que está sendo dado nesse país para a potência do vírus só reafirma o que estou dizendo. Estamos nos acostumando à proliferação e a multiplicação da morte à nossa volta.”
O luto na pandemia
Na medida em que o vírus continua a circular e a fazer vítimas, o processo de perda de entes queridos fica cumulativamente mais doloroso, já que velórios e enterros precisam ser limitados por conta da contaminação.
“O luto e a dor sempre andaram juntos, mas neste momento em que a dor não pode ser reduzida a partir dos rituais, ela ganha uma dominância dentro do processo de luto, sendo mais difícil de ser vivida e elaborada. Isso leva ao surgimento de quadros como estados depressivos, dificuldades de dormir, crises de ansiedade com maior frequência e irritabilidade.”
“Penso que só depois que passar a quarentena e as pessoas voltarem aos convívios entre seus próximos que a gente vai conseguir ter uma ideia mais viva desses diferentes problemas que foram gerados.”
Não são apenas os desafios psíquicos trazidos pelo vírus que preocupam o psicanalista, que em sua experiência supervisionou hospitais psiquiátricos, Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e outros dispositivos.
Há ainda as planejadas investidas do governo contra os modelos de tratamento que consideram a subjetividade dos sujeitos e apostam em suas relações com o mundo, alinhados à Reforma Psiquiátrica e à Luta Antimanicomial.
Para Dias, que há quase duas décadas avalia as práticas terapêuticas de pacientes nos Hospitais São João de Deus e Nossa Senhora de Fátima, em São Paulo, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica agora sucumbem para privilegiar pequenos negócios relativos a internação psiquiátrica, por meio de clínicas utilizadas com essa finalidade.
“Trata-se do retorno de uma mentalidade redutora e punitiva, no sentido de visar a uma adaptação forçada às expectativas do meio social. Basta um pouco de experiência nesse campo para constatar a lucratividade de tais iniciativas, que contam com hiperinvestimentos nas medicações.”
“Sabe-se, também, que o tempo de internação é cada vez mais reduzido, tendo em vista a falta de vagas na rede pública, aliada ao baixo valor das diárias pagas pelo SUS para manter o paciente internado. Tudo se passa como se o binômio internação/medicação fosse suficiente para abordar a complexidade das patologias mentais.”
Tratamentos para o discurso da estupidez
Diagnósticos de uma época são recorrentes na Psicanálise, como demonstraram Freud e Lacan ao teorizar sobre as relações entre as pessoas, a cultura e o poder.
Dias identifica o discurso da estupidez e propõe tratamentos possíveis. Mas não se trata de uma solução, como ele explica: “(É preciso) reconhecer a culpa como um elemento que reúne as pessoas pra pensar seriamente seus erros, suas ilusões. É a necessidade de retomar projetos políticos que não fiquem tão confiantes de que as pessoas vão ficar esperando indefinidamente por soluções e que não vão reagir em nenhum momento.”
Dias aponta que também é necessário reconhecer a complexidade dos afetos humanos e reconsiderar o papel decisivo do ódio tanto na subjetividade individual quanto na coletiva.
“Essa é uma crítica necessária de ser feita em relação às ideologias, praticamente as de esquerda, que sempre acreditaram no poder da união e de que as pessoas iam querer o bem e o melhor pra sua coletividade.”
Ele frisa que o discurso da estupidez ensina como é possível mobilizar a paixão que as pessoas têm pela fragmentação e pela luta por interesses próprios.
Ele defende também ações práticas, como o reconhecimento de pessoas que exercem a solidariedade em comunidades.
“Esses heróis do cotidiano merecem ser reinvestidos por cada um de nós interessado em que essa realidade se modifique.”
Fonte: BBC News