Médicos e entidades da saúde estão em alerta para uma potencial crise de desabastecimento de remédios cruciais usados no combate contra a covid-19 em todas as regiões do Brasil – algo que, segundo parte dos especialistas, tem o potencial de ser tão grave e mortal quanto a escassez de oxigênio que afetou cidades como Manaus.
Alguns sinais preocupantes começaram a surgir ainda no início deste ano: farmacêuticos que trabalham em hospitais paulistas passaram a relatar ao Conselho Regional de Farmácia (CRF-SP) que estoques de alguns medicamentos cruciais no tratamento de pacientes graves com covid-19 estavam ficando em nível perigosamente baixo.
Segundo profissionais da área, a falta desses medicamentos pode levar a um enorme aumento do número de mortes de pacientes com covid-19 no Brasil.
“Como esses relatos começaram a aumentar, resolvemos fazer um levantamento”, explica à BBC News Brasil Marcelo Polacow, vice-presidente do CRF-SP. Em pesquisa feita em fevereiro com 234 farmacêuticos de hospitais públicos e privados de todo o Estado paulista, 77% responderam que havia problemas de desabastecimento de medicamentos – em particular alguns sedativos e neurobloqueadores musculares.
Ambos são parte do chamado “kit intubação” e essenciais para permitir que pacientes graves com covid-19 sejam intubados e, assim, possam respirar mecanicamente.
A escassez desses medicamentos existe atualmente em todos os Estados, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
No âmbito municipal, a avaliação é de que os estoques atuais são suficientes para mais duas semanas.
“Não temos desabastecimento ainda, mas sim uma baixa no estoque, por conta do aumento de leitos e de pacientes intubados ter aumentado o consumo de kits intubação”, diz à BBC News Brasil Wilames Freire, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais da Saúde (Conasems).
“No fim de semana passado foi feita uma distribuição aos Estados, e a avaliação é de que os estoques darão para 15 dias, em tese – dependendo do andamento da pandemia e dos efeitos dos lockdowns”, prossegue.
Remédios ‘insubstituíveis’
Como explica Marcelo Polacow, emobra haja mais de um remédio sedativo e bloqueador muscular, o uso desses remédios é indispensável para intubar e manter intubados os pacientes – um procedimento crucial para a vida de quem está com comprometimento respiratório grave por conta da covid-19.
“Não são remédios substituíveis. Para colocar o tubo e oxigenar o organismo, é preciso relaxar as vias aéreas. Sem isso, não dá para fazer a intubação, nem para manter a intubação, e os índices de mortalidade (se não houver esses medicamentos) pode ser assustador”, diz.
Segundo Polacow, o gargalo é que, diante dos números estratosféricos da covid-19 no Brasil, a indústria não tem conseguido suprir a demanda por esses medicamentos.
“A matéria-prima é importada, depois embalada ou colocada em ampolas aqui. E as indústrias estão tendo dificuldade em importar, assim como está acontecendo com os IFAs (insumos farmacêuticos ativos) de vacinas. Houve um aumento gigante na demanda nos últimos três meses, e a indústria não está tendo para entregar.”
Freire, do Conasems, diz que a entidade fez uma requisição ao Ministério da Saúde para que este pedisse o excedente de medicamentos das indústrias. Também pediu a suspensão nacional das cirurgias eletivas (ou seja, não urgentes), que poderiam consumir medicamentos sedativos.
“Muito está sendo feito, (mas) a gente fica preocupado porque não consegue prever o que vai acontecer em um curto espaço de tempo”, diz Freire. “O Ministério da Saúde terá que regular o uso e importar (medicamentos para intubação) o mais rápido possível, para eles não faltarem em um momento crítico.”
O Ministério da Saúde foi consultado pela BBC News Brasil e, caso responda, este texto será atualizado.
Em São Paulo, a Secretaria Estadual da Saúde informou em nota que “com o recrudescimento da pandemia, a pasta intensificou o monitoramento dos estoques de oxigênio, insumos e medicamentos, incluindo os utilizados em pacientes intubados em unidades hospitalares para atendimento aos casos de covid-19. Os hospitais estaduais estão abastecidos”.
Outro exemplo do cenário preocupante vem o Paraná, onde hospitais públicos e privados estão lotados.
Em entrevista ao programa Meio Dia Paraná, a secretária municipal de Saúde de Curitiba, Márcia Huçulak, afirmou nesta semana que a pasta está “muito preocupada” com o abastecimento de remédios para intubação.
“Temos ainda um estoque, mas o consumo aumentou absurdamente, principalmente de neurobloqueadores. Os fornecedores estão dizendo que estão com dificuldades de atender nossos estoques”, declarou.
Para a pesquisadora Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, a atual escassez é “indesculpável”, uma vez que, em agosto do ano passado, no pico da primeira onda da pandemia, o grande uso de tais medicamentos já sinalizava a importância em adquiri-los com antecedência.
“Houve uma demora do poder público em agir e uma desmobilização depois da primeira onda, inclusive dos hospitais de campanha, mesmo quando já se previa uma segunda onda. Existe uma inércia muito preocupante”, diz ela.
‘Não é mais só ter leito e médico’
Para Marcelo Polacow, o desabastecimento criaria o cenário para uma tragédia no “mesmo nível de preocupação” da crise da falta de oxigênio que acometeu Manaus.
Osorio-de-Castro, da Fiocruz, opina que é difícil comparar as duas crises, uma vez que a produção de oxigênio é mais concentrada na mão de poucas empresas, ao contrário da fabricação de remédios, mais pulverizada.
Ao mesmo tempo, ela alerta para o perigo de o poder público acabar sendo levado a comprar esses medicamentos a um preço muito mais alto neste momento de crise, por conta da alta demanda.
“Tem de haver um esforço conjunto (entre indústrias, entes privados e públicos) para distribuir esses medicamentos com solidariedade, e para quem de fato o precisa. E a gente não está vendo esse esforço.”
“É uma calamidade com vários culpados: a falta de isolamento social, a lentidão na vacinação, a ausência de políticas públicas”, opina, por sua vez, Marcelo Polacow.
Ele explica que a escassez de remédios cruciais pode minar o esforço em garantir mais leitos hospitalares.
“Hoje não (basta) mais só ter leito e médico. Apesar de não termos levantado em nossa pesquisa quantos dias duram os estoques dos hospitais (paulistas), alguns relatam que esses estoques vão durar cinco, dez dias.”
O mais importante no momento, diz ele, é seguir à risca o isolamento social e intensificar a pressão pela vacinação em massa, de forma a tentar reduzir a sobrecarga sobre o sistema de saúde.
O Conselho Federal de Farmácia confirmou em nota, nesta quinta-feira (18/3), que “informações de farmacêuticos que atuam em hospitais e outros serviços de saúde de diversos pontos do país, bem como manifestação púbica dos secretários estaduais e municipais da saúde e da própria indústria farmacêutica, evidenciam o desabastecimento de bloqueadores neuromusculares, sedativos e outros medicamentos utilizados em terapia intensiva, como o midazolan, essenciais a uma intubação humanizada e segura”.
O órgão afirmou que “apela pelo uso racional dos medicamentos, para que a pandemia não faça vítimas também entre pessoas que sequer contraíram o coronavírus, mas têm outras doenças tão graves quanto a covid-19”.
Fonte: BBC