O avanço da variante P.1, descoberta em Manaus em janeiro, levou a cidade de São Paulo a mudar sua orientação para todos aqueles que forem infectados por coronavírus. Agora, eles devem procurar uma unidade de saúde assim que surgirem os sintomas, e não mais quando eles se agravarem.
Segundo a prefeitura, a mudança tem três motivos, todos associados à nova variante: agravamento rápido do quadro de saúde, mais jovens atingidos e tempo de internação maior.
“Não só o processo de internação é mais longo, a viremia (presença do vírus no sangue), mas o agravamento é muito repentino na P.1. Há relatos do atendimento na ponta de jovens que são internados e em 24 horas já precisam ser intubadas. Literalmente isso”, afirmou o secretário municipal de saúde de São Paulo, Edson Aparecido, em entrevista à BBC News Brasil.
Levantamentos apontam que a variante, mais contagiosa, já está presente em mais de 80% dos pacientes da Grande São Paulo no início de março. A P.1 tem avançado rapidamente em outras partes do país. No Rio de Janeiro, estima-se que a incidência dela passou de 67% em fevereiro para quase 100% em abril.
Essa variante do coronavírus é mais contagiosa, entre outros motivos, por causa de mutações que facilitaram a invasão de células humanas. Essa característica pode estar ligada a outras duas hipóteses que estão próximas de serem confirmadas por cientistas: agravamento mais rápido do quadro de saúde e maior letalidade.
Até agora há diversos relatos de profissionais de saúde da linha de frente que reforçam essas possibilidades, mas os estudos conclusivos só devem ficar prontos nas próximas semanas. Um levantamento da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), baseado em quase metade dos 55 mil leitos de UTI do país, apontou na onda atual um aumento de 40% no número de pacientes que precisaram ser intubados e receber ventilação mecânica.
“A preocupação de São Paulo se justifica diante de tudo que temos visto em diversas partes do país. A evolução mais rápida, um alastramento muito maior e mudança no perfil de casos, atingindo também pessoas mais jovens. A evolução mais rápida do quadro de saúde é um fato registrado em diferentes localidades”, disse o virologista Fernando Spilki, professor da universidade Feevale e da rede Corona-ômica BR MCTIC/Finep, projeto de sequenciamento do Sars-CoV-2.
Mas se o sistema de saúde está em colapso pelo país, com milhares de pessoas nas filas à espera de UTI e falta de insumos e profissionais de saúde, por que São Paulo passou a recomendar que ainda mais pessoas busquem atendimento médico logo no início dos sintomas?
E o que dizer das cidades menores? Elas teriam capacidade de absorver essa demanda ainda maior por atendimento? Dificilmente, afirmam especialistas ouvidos pela reportagem.
Jovens e o atendimento tardio
Uma das principais características associadas à nova variante é a maior incidência entre os mais jovens. A maioria dos casos registrados em 2021 em São Paulo, por exemplo, se concentra entre pessoas de 20 a 54 anos.
Dados do governo paulista apontam que na primeira onda da pandemia mais de 80% dos leitos UTIs eram ocupados por idosos e portadores de doenças crônicas, e agora 60% das vagas são ocupadas por pessoas de 30 a 50 anos, a maioria sem doença prévia. Dados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) apontam alta de 17% nos pacientes de até 40 anos em UTIs.
A principal hipótese para isso é epidemiológica, e não uma predileção do vírus por mucosas mais jovens. Há uma exposição grande de homens dessa faixa etária, por exemplo, que não podem deixar de sair para trabalhar ou de circular em transportes públicos lotados. Há também aqueles, minoritários, que não deixaram de frequentar festas.
Mas o que o aumento de casos entre os mais jovens tem a ver com o agravamento da doença mais rápido?
Bem, a linhagem do coronavírus identificada em Manaus apresenta mutações nos genes que codificam a espícula, a proteína que permite a entrada do vírus nas células humanas e, portanto, pode facilitar a infecção pelo Sars-CoV-2.
Dados divulgados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no fim de fevereiro de 2021 indicam que adultos infectados com essa variante têm carga viral até 10 vezes maior, o que reforça a teoria de que ela aumenta a transmissibilidade. Quanto mais vírus dentro do corpo, mais vírus disponível para ser espalhado.
Mas isso não leva necessariamente a uma doença mais grave.
“A carga viral é ao mesmo tempo uma consequência e causa. O coronavírus invade mais células, aumenta a carga viral, é mais transmissível. Mas não há correlação entre a carga viral e a gravidade da doença. Na covid-19, as diferenças entre um sintomático e assintomático ou um grave são pequenas. Há tendência de carga viral maior, mas não é determinante para a gravidade da doença. O aspecto de infectar células com mais facilidade, no entanto, pode estar ligado a uma pneumonia mais grave porque pode atingir uma área maior do pulmão”, explica o virologista José Eduardo Levi, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de pesquisa e desenvolvimento da Dasa (rede de laboratórios).
Assim como a P.1, as variantes B.1.1.7 (identificada no Reino Unido) e a 501Y.V2 (descoberta na África do Sul) têm mutações na espícula que facilitam essa conexão com a célula humana. Duas mutações em particular chamam a atenção: a N501Y, presente nas três variantes, e a E484K, encontrada na da África do Sul e na que circula no Brasil.
No caso da N501Y, há indicativo de que ela possa tornar o Sars-CoV-2 mais transmissível — mais contagioso, o vírus poderia levar mais pessoas ao hospital e elevar o número de mortes.
No caso da E484K, estudos têm demonstrado que ela pode dificultar a ação de anticorpos, o que gera uma preocupação em dois momentos: no combate do sistema imunológico contra o vírus em infecções ou reinfecções, e na eficácia das vacinas.
Um estudo liderado por pesquisadores brasileiros que foi publicado na revista Science em 14 de abril apontou que, munida dessas mutações, a variante P.1 surgida em meados de novembro de 2020 pode ser até 2,4 vezes mais contagiosa.
A mudança no protocolo da Prefeitura de São Paulo mira principalmente os mais jovens porque esse grupo tende a procurar atendimento mais tardiamente, quando a doença está bastante agravada, muitas vezes de forma silenciosa.
De que modo o atendimento antecipado ajuda o paciente?
É importante deixar claro que não há um tratamento precoce contra o coronavírus que tenha se mostrado eficaz. E a recomendação de buscar atendimento logo nos primeiros dias de sintomas não inclui medicamentos capazes de evitar o agravamento de alguma forma, mas sim um acompanhamento especializado da evolução dos sintomas, com consultas e exames.
Há dois objetivos principais, segundo o secretário municipal de saúde de São Paulo. Primeiro, é evitar que um eventual tratamento ocorra tarde demais (como oxigênio e corticoides, apenas quando o caso é considerado grave). Segundo, tentar gerenciar melhor a oferta de leitos e evitar um colapso ainda maior.
“Normalmente, quando a pessoa fica em casa, sobretudo o jovem, que acha que resiste mais à doença ou nem percebe, e demora um pouco mais de tempo para procurar o sistema de saúde e na hora que procura já tem um quadro respiratório mais problemático, com o pulmão mais comprometido”, explica Aparecido.
Suzana Lobo, diretora-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), explica que essa demora em procurar atendimento médico pode estar ligada ao modo com que os sintomas se apresentam nos mais jovens.
“Não podemos afirmar com certeza por que isso acontece, mas podemos especular. Esses pacientes mais jovens têm uma reserva cardiorrespiratória melhor. Eles não têm a apresentação dos sintomas tão rapidamente ou tão importante quanto os pacientes mais idosos. Eles subestimam os sintomas. Ou talvez os sintomas nem se manifestem tanto. Quando eles procuram o hospital, o quadro já estava grave”, disse em entrevista à BBC News Brasil.
Segundo ela, em casos graves (que necessitam de oxigênio) e críticos, o atendimento antecipado é fundamental. “Cada hora conta, cada hora que precisa de uma UTI, de intubação, de um tratamento mais adequado e ele não está na UTI, vai agravar. E é isso que tem acontecido no Brasil. Como as UTIs estão lotadas, eles vão piorando e quando chegam na UTI, eles já esperaram 12h, um, até três dias. Às vezes até já intubado fora da UTI. É um problema sério porque cada hora é importante para o paciente grave que está em franca deterioração clínica.”
Como explica o secretário municipal de saúde de São Paulo, a mudança no protocolo visa também uma previsibilidade maior da ocupação de camas hospitalares.
Atualmente, quase 88% dos leitos UTI da cidade estão ocupados. Antes da pandemia, São Paulo tinha 575 leitos UTI SUS, e hoje conta com 1.430. Havia quase 2.000 leitos de enfermaria, e hoje são mais de 3.600. “Mas o que a gente abre ocupa rapidamente”, afirma Aparecido.
Além disso, eles ficam ocupados por mais tempo. No Estado de São Paulo, a média de ocupação de UTIs passou de 7 a 10 dias por paciente, para 14 a 17 dias, pelo menos, segundo o governo estadual.
“Isso tudo são formas e mecanismos de tratamento clínico e acompanhamento para que ele (o paciente) não tenha um agravamento, que não precise do leito de UTI e não venha eventualmente a um óbito. Na medida que você faz isso, conseguimos controlar melhor o fluxo da ocupação dos leitos de UTI de toda a rede pública. A gente planeja em função da demanda que pode vir a ocorrer”, afirma ele.
A oferta de leitos no Brasil é uma das maiores do mundo, mas é bastante desigual ao redor do país. Especialistas ouvidos pela reportagem concordam com o monitoramento dos pacientes ou políticas de alerta para os riscos de se buscar tratamento tardiamente, mas veem sérios obstáculos de repetir essa estratégia em outras localidades.
“Eu não acredito que quem tem sintoma vai conseguir atendimento médico, porque é muita gente. Muita gente. Como é que todo mundo que tem sintoma no Brasil vai conseguir um médico hoje? Não sei se há capacidade do sistema para isso”, diz Lobo, diretora-presidente da Amib.
Ainda assim, é importante lembrar que a chegada a uma UTI não é uma garantia de que o paciente vai sobreviver. Cerca de 80% dos intubados por covid-19 morreram no Brasil em 2020, sendo que a média global é de 50%.
Fonte: BBC News